Quando uma canção popular de Natal se torna tradicional.

17-12-2022

Jolei,
Quando em miúdo me juntava em roda de amigos sem bola, havia sempre um que puxava uma anedota...


Quando em miúdo me juntava em roda de amigos sem bola, havia sempre um que puxava uma anedota e lá se desatava o novelo que as anedotas se contam como se come cerejas. Apesar de algumas já serem conhecidas de todos, valia a arte expressiva de um ou outro com jeito para as contar, que isso era o bastante para fazer rir a malta.

Do cardápio sempre fazia parte aquelas do género «a coisa maior do mundo» cujas personagens normalmente eram um francês, um inglês, um americano e um português «lusito» que ficava sempre para o fim por não ter nada de relevante no país, consoante o tema, aparentemente maior do que no daqueles, sempre escarninhos, mas que no fim ganhava sempre pois lá tirava uma da cartola que surpreendia a concorrência. Para dar um sabor mais picante à colherada, o nosso «lusito» era obviamente o Bocage, personagem associada à folgança e à pândega, que entre nós raro seria aquele já minimamente informado sobre o enorme vulto que Manuel Maria Barbosa du Bocage fora na transição do arcadismo literário português para o romantismo no século XIX.

É bom fazer roda de amigos. Estreitam-se relações, trocam-se opiniões, atualiza-se a informação, alguma de interesse comum. Uma roda de amigos pode ocorrer espontaneamente quando os intervenientes se reencontram. Bebe-se um café, partilha-se um vinho. Também pode ser condicionada pelas circunstâncias, como na escola, num lar, numa prisão. Mas quando programada há sempre uma fogueira acesa no centro de uma mesa cuja chama é alimentada pelo interesse da conversa seja temática ou diletante. E claro que aqui esconjuro reuniões de trabalho com motivações diversas mesmo que para planificar uma ação. Não é neste espaço que ocorrem as ideias. Estas geralmente apresentam-se individualmente, e o mínimo que pode suceder é serem aceites ou recusadas.

Por isso não há nada melhor do que uma roda de amigos porque há sempre novelos para desfiar. Mesmo trabalhando no estrangeiro e por uma razão identitária como o Natal muitos se juntam numa roda de mesa com pessoas em similar condição. Fala-se inglês que é língua global.

Do cardápio do entretenimento não fará parte qualquer novelo anedótico do género «a coisa maior do mundo» cujas personagens normalmente eram um francês, um inglês, um americano e um português «lusito» que ficava sempre para o fim por não ter nada de relevante para contrapor.

Então um Sérvio propõe cada um dos presentes entoar um cântico tradicional de Natal do seu país. Cantam primeiro os franceses e todos aplaudem com elogios. A seguir levantam-se os ingleses e sucede o mesmo. Individualmente ou em grupos, consoante o número de presentes por país, foram entoando os seus cânticos, até que chegou a vez do pequeno grupo português. Bem, olharam uns para os outros e decidiram cantar a música natalícia mais mediatizada em Portugal - "A Todos um Bom Natal" com música de César Batalha e letra de Lúcia Carvalho para o Coro infantil de Sto Amaro de Oeiras. O disco foi lançado em 1980 e graças ao Natal dos Hospitais da RTP adquiriu o estatuto de "clássico de Natal".

Como o grupo só sabia o refrão foi o que saiu e como os presentes não se tivessem manifestado, perguntaram "então que tal?" Um deles questionou: "Essa é uma canção tradicional, é que parece um cântico de claque de futebol..."

Pois é. Faltou o Bocage das anedotas. E mais ainda: o conhecimento das nossas belas canções tradicionais de Natal que estão adstritas aos cantares folclóricos, mas que por misantropismo cultural nunca chegam às nossas escolas nem à RTP.