Um país sem fiança!

25-03-2023

Dom Queixote,
"Para fazer jus à fiança que os eleitores caucionam nos processos eleitorais, o governo, no mínimo, terá que parecer sério..."


A palavra fiança significa uma garantia, esta sinónimo de responsabilidade e que, consequentemente, é sinónimo de obrigação.

Podemos inferir, portanto, que todos os cargos de responsabilidade têm alguma obrigação, sejam eles relativos à gestão pública ou digam respeito ao universo privado. A política governamental e partidária, que é um instrumento público, está claramente revestido de responsabilidade e, sem dúvida, implica obrigação, ou obrigações. Entre outras, envolve a obrigação de ser responsável, de gerir bem, de antever e de tomar as medidas apropriadas para minimizar custos e combater as dificuldades que diariamente surgem ao país…

Associada a estas obrigações, está também a necessidade de parecer (hoje em dia, chamamos a isso "comunicação"), pois "à mulher de César não basta ser séria", é preciso… "comunicar"! É por isso que os partidos e outras instituições, dos halos desportivo, público ou privado, se apresentam hoje com gabinetes de comunicação, obviamente para "comunicar" bem (e já agora nós esperamos que a verdade seja algo de bem, para que possa ser comunicada)!

Assim, concluímos que confiamos mais facilmente sempre que a "comunicação" nos faz sentido, sempre que o sério não é simplesmente sério, mas que nos parece ser sério.

Ora, posto isto, não será um exercício de grande complexidade intelectual concluir que vivemos num país que é governado sem fiança. Sim, é que para fazer jus à fiança que os eleitores caucionam nos processos eleitorais, o governo, no mínimo, terá que parecer sério. Mas estaremos habituados a que não pareça?

Vejamos…

Num dia, o país, por influência da guerra e dos pretensos aproveitamentos das grandes superfícies, tem de combater a inflação com outros meios que não a descida do IVA, já que Espanha adotou esta medida e lá não funcionou. No dia seguinte, é essa mesma medida que se adota para combater a inflação, porque afinal temos a palavra de honra das grandes superfícies (que na semana anterior eram o demónio, fiscalizado pela ASAE, por serem os responsáveis pelos aumentos dos preços), que não absorverão as margens geradas pela medida. Desta forma, a "comunicação" explica que a especulação está resolvida. E nós acreditamos!

Noutro dia, na novela da TAP, ficamos a saber que se despede a CEO com justa causa e que, por isso, o estado nada terá a pagar por essa decisão. Já no dia seguinte, as televisões abrem os noticiários com afirmações do ministro das infraestruturas dizer que, afinal, se despede, mas que há lugar ao pagamento de prémios…. Pior, pelas opiniões dos comentadores e especialistas dos media, afinal as decisões estão feridas de ilegalidade e poderão vir a ser revertidas após os já anunciados processos judiciais de recurso. Desta forma, a "comunicação" explica que o dinheiro do contribuinte está a salvo desta situação. E nós acreditamos!

Num outro momento, há mulheres que, no final do tempo de gravidez, se sentem inseguras pois não sabem se o hospital, a que sempre recorreram e onde foram acompanhadas, estará disponível no momento da sua "hora H", pois alguém decidiu o encerramento das urgências obstétricas. Prontamente, o ministro responsável político pela saúde é peremptório e afirma nos media que "não vai haver encerramentos de serviços de neonatologia". No dia seguinte, afinal… terão de encerrar, mas a "comunicação" explica que o sistema funciona em rede e que não há prejuízo para as grávidas. E nós acreditamos!

Num outro momento, o mais alto responsável pelo governo anuncia que o arrendamento coercivo vai ser uma realidade e que o alojamento local é a razão da falta de habitação no nosso país… Mas, o mais alto comentador da nação diz que não concorda com a medida e que ela não é exequível! Bom, neste caso a "comunicação" não clarifica e eu… Já não sei em quem acreditar!

Por fim, quando a "comunicação" falha, acontece frequentemente que os responsáveis (recordemos o segundo parágrafo deste texto e concluamos que são aqueles que estão obrigados a dar uma garantia) são acometidos de oportunos lapsos de memória, omitindo ou alegando não se recordarem de certos factos. Nesse dia não sabe, mas no outro, por milagre a memória regressa, ou os comprimidos fazem efeito, ou então, alguém de fora, liga o polígrafo e fica claro que aquilo de que não havia memória, afinal aconteceu! Ora, francamente, neste caso… EU já não acredito!

Estamos, portanto, num Portugal sem fiança, pois ninguém que tenha assumido cargos com responsabilidades se obriga a governar bem, a estudar antecipadamente o que fazer, a ouvir os outros e a decidir pelo melhor… Como fazemos na nossa casa! Tudo se desenrola de forma inacabada (ou "incomeçada"), impulsiva, com a frenética vontade de dar boas notícias a todo o custo, mesmo sabendo que os resultados nunca surgirão. E isso leva à fragilização da fiança, ficando o Zé Povo sem saber se as medidas adotadas são válidas e apropriadas, se são as realmente as melhores, porque frequentemente apenas surgem por pressão e a reboque das oposições.

A verdade, verdadinha, é que quando as dúvidas permanecem, resvala a confiança.

Podemos continuar a fazer de conta que acreditamos… Poder, podemos, Mas Eu Não Faria Isso!