Lembrança das férias

27-09-2022

Posso falar o que eu acho? @Anabela Reis
Com o fim do verão e das férias ficam só as lembranças. Algumas em fotografias, outras em memórias.
Guardarei esta no coração, para o resto dos meus dias.


Trazia os chinelos na mão, ao sair da praia. Preparava-me para me sentar no paredão para sacudir a areia dos pés, quando percebi que aquele homem sentado ali era o mesmo de todos os dias. Apenas hoje, virado de costas para o mar. Não o reconheci antes. Sempre o vira a observar atentamente o mar. Todos os dias, todo o dia.

"Boa tarde!" - saudei com um sorriso, enquanto me sentava e pegava na toalha para a moldar à volta dos pés.
"Boa tarde, minha senhora."- olhou para mim com aquele olhar atento, que eu acreditava já conhecer.

Gostava de compreender aquela persistência, no mesmo lugar, na mesma posição. Exceto hoje. "Hoje tivemos sorte com o dia de praia. Até o mar estava com uma temperatura agradável e manso para uns mergulhos"- quis continuar a conversa.

"Hoje sim, minha senhora!"- olhou para trás, para o mar e acrescentou, fitando-me - "Aqui o mar raramente é manso."- desceu os olhos para as mãos calejadas e escuras, com os dedos entrançados, em oração - "O mar é muito traiçoeiro".

Só quem conhece bem as manhosices do mar pode ter tal afirmação. - "O senhor conhece bem o mar...."- olhei-o.
"Minha senhora, eu nasci aqui. A minha mãe pariu-me na praia, no dia em que o meu pai morreu. Todas as mulheres estavam na praia à espera que os barcos chegassem. O do meu pai não chegou".
Olhei-o, perturbada pela aceitação, na sua voz. Balbuciei - " O mar não se compadece com quem dele vive."

"É verdade, minha senhora. Mas aqui, nessa altura éramos todos pescadores. Com doze anos também me lancei ao mar, no barco do meu padrinho. Fui pescador sessenta anos. Uma vida muito dura". - encolheu os ombros e sorriu - "Mesmo assim, gostamos disto. Agora é mais fácil. Os barcos são melhores e as máquinas ajudam muito."- fechou os olhos e levou a mão direita à testa - "Já perdi a conta de quantos foram engolidos aqui"- e a mostrar as mãos abertas - "E de quantos consegui arrancar das ondas" - acenou em afirmação, pensativo -" Nos meus oitenta anos, minha senhora, umas centenas deles. Quase todos jovens!"

Fiquei a olhar no brilho do seu olhar, tão atento, tão vivo, mas ao mesmo tempo tão profundo na sua dor. "Lá no alto, é mais difícil arrancá-los. O mar engole-os de uma vez só. Aqui no rebentar das ondas, o mar brinca com eles antes de os engolir. É nessa altura que os podemos tirar, ou ficamos lá com eles, também."- lançou a cabeça devagar, por cima do ombro, o queixo a apontar os nadadores salvadores sentados na praia, protegidos pelo tapa-ventos e guarda-sol. - "Venho para aqui todos os dias, ajudar os moços. Eles foram preparados para isto, mas o mar, entendo eu melhor! E o povo não respeita nada. Coitados dos moços!" - abanou a cabeça, indignado. - "já tive que saltar daqui e ir a correr salvar um deles, quando tentava tirar um rapaz do mar. Só Deus sabe como foi difícil, mas tirei os dois!" - com um olhar quase a sorrir- "Aquele moço, ali, ao final da tarde de domingo, paga-me no bar dos pescadores, uma cervejita por lhe ter salvado a vida, diz ele."- depois a torcer o nariz - "O rapaz que tirei aquando ele, nem um obrigado deu, minha senhora!"- baixou a cabeça. Depois olhou-me "Olhe, agradeço a Deus sempre que Ele me deixa tirar uma pessoa do mar. Ninguém sabe como fico feliz, por isso."

Não tive palavras para comentar o desabafo. Os meus olhos fixos nos dele. A sua pele queimada pelo sol e pelo sal mostrava, agora as rugas da dor de uma vida de pescador misturadas com as de alegria e felicidade, naquele sorriso tão leve. Sem pensar- "Obrigada por ser a pessoa que é!" - peguei-lhe nas mãos e observei-as. Acariciei-as e beijá-las-ia se ele não se tivesse levantado e mudando a posição das nossas mãos e envolvendo as minhas - "Oh minha senhora, eu é que agradeço por me ter ouvido com tanta atenção. Os daqui já me conhecem e as pessoas que vem cá de férias raramente falam com a gente. A senhora não sabe como me fez bem falar um bocadinho."

Sorri e agradeci novamente. Antes de me despedir, convidei-o para uma cervejinha no barzinho da praia. Aceitou.

Anabela Reis