Crónicas das ecovias 3
Jolei,
O tempo das «pasteleiras»...
Uma das coisas que mais me surpreendeu quando visitei pela primeira vez a Holanda e, já lá vão alguns anos, foi a observação de centenas de bicicletas de criança estacionadas nos logradouros das escolas que correspondem em Portugal ao Pré-Escolar e 1º Ciclo. Não, não estou a exagerar. A razão é que messes países do Centro e Norte da Europa as crianças aprendem a usar a bicicleta logo que dão os primeiros passos e muitas vezes até antes. E, se numa primeira fase são acompanhados por um dos progenitores, logo que se sentem autónomos, ei-los sozinhos ou em pequenos grupos palreando ou cantarolando pelas ruas fora ainda noite no inverno, neve, chova ou troveje, haja ou não ciclovias assinaladas no trajeto. A prioridade no percurso é deles como é a dos adultos.
Em comparação, aqui os pais «lusitos» empanturram de carros a entrada das escolas e só não entram com eles nos logradouros porque não lhes é permitido.
Aprendi a andar de bicicleta alugando uma na oficina do senhor Esteves que ficava numa rua com ladeira onde me deixava embalar sem pedalar. Um escudo por quarto de hora. Mas havia sempre um «lusitinho» pouco douto na escola, mas lesto neste expediente de atalaia que me roubava a bicicleta e lá ia a correr para o senhor Esteves para fazer a denúncia até a mesma ser recuperada por este que me cobrava sempre mais um escudo por alegado excesso.
Nesse tempo, que a carga simbólica da palavra já inicia o seu sentido, as oficinas de bicicletas superavam largamente as dos escassos automóveis. Calços e cabos de travão, correntes empenadas, furos nas câmaras de ar, e outras panes continuavam a alimentar os «Esteves» deste país mesmo um século depois da invenção deste veículo de duas rodas que já Da Vinci projetara no séc. XV.
Chamavam-lhe «pasteleiras» e eram o transporte dos trabalhadores mais os que cabiam no quadro e grade de carga na roda traseira, sobretudo nos pequenos meios populacionais onde o transporte público urbano era inexistente. Eram o alvo da polícia de trânsito. O portador do veículo ou era multado pelo transporte de penduras, ou por não possuir licença e matrícula atualizada ou por falta de carta de condução, cujo exame se fazia creio que nos extintos Governos Civis. E daquele ou daquela que não esticasse claramente o braço a assinalar a direção a tomar num cruzamento que ouvia das boas do sinaleiro, porque nota «sine qua non», um ciclista era desprovido de prioridade total, não sei se até perante uma carroça de tração bestial. Nas subidas eram levadas às costas e de noite era preciso pedalar com vigor para acionar o dínamo dos faróis.
Nessa época as ciclovias eram as estradas de macadame e as ruas empedradas. Quem circulasse no passeio ficava sem bicicleta além de pesada coima. Lembrei-me deste pormenor a propósito dos utentes «lusitos» das trotinetes.
As «pasteleiras» rapidamente seriam substituídas pelas motorizadas e com a subida do poder de compra após o 25 de Abril os automóveis ocuparam todo o espaço, sendo as bicicletas hoje um artigo premium com direito até a luxuosas ecovias para uso de veraneio. Claro que me refiro ao Portugal «lusito». Só não entendo porque razão as Câmaras investem tanto dinheiro do nosso erário nesta ostentação hiperbólica de opulência quando bastaria comprar uns litros de tinta branca e criar vias cicláveis nas nossas cidades e assim fazer algo para mitigar os efeitos inelutáveis das alterações climáticas.
Claro que Portugal não é um país plano como a Holanda. Mas no tempo das «pasteleiras» também não o era. Além disso os holandeses nem sequer são os melhores no ranking do ciclismo desportivo. Esse mérito pertence a alemães e norte-americanos. Mas não é pela proliferação de ecovias que Portugal evoluirá neste particular. Será na mudança de mentalidade. O pior é que nisso é uma verdadeira «pastelaria».